Queremos dizer que desconfiamos.
Desconfiamos quando, de repente, a grande mídia central e seu braço cinematográfico focam seus capitais e lentes sobre as mesmas periferias que até bem pouco tempo atrás só lhes causavam medo. Desconfiamos das novas tomadas, das novas cores e sons que esse foco procura extrair delas, como também do novo interesse que ele demonstra por tudo aquilo que nelas se fez e se faz em meio às mais duras adversidades, com pouca grana e muito suor, sangue e luta.
Desconfiamos quando essas mesmas lentes centrais selecionam aquilo que consideram mais ou menos “autêntico” dentre o mundo de coisas que hoje se produz pelas periferias. Desconfiamos quando estas são convidadas a fazer as mais diversas coisas “agora por elas mesmas” e, ainda mais, quando as elites centrais aplaudem de pé os resultados.
Desconfiamos, portanto, quando a periferia torna-se, ao mesmo tempo, o nome de um investimento econômico certeiro e de um espetáculo agradável e comovente. Desconfiamos quando sabemos que a grande maioria das lutas travadas e das artes produzidas pelos que vivem e constroem as periferias são constantemente ignoradas por essas mesmas lentes e por esses mesmos interesses econômicos.
Nós, do coletivo FELCO de São Paulo, desconfiamos porque não lutamos por uma paz que se confunde com a segurança de poucos, nem por “oportunidades” que sirvam à reprodução do capitalismo. E, por isso, nos perguntamos:
Quais são as novas coordenadas da luta de classes nesse momento em que a mais alta elite, a elite “S.A.”, sempre tão centrada em si mesma, se alimenta cada vez mais do que se faz nas periferias e em nome da Periferia? Quais as coordenadas desse novo jogo de imagens e sons para o qual as periferias estão sendo convidadas a participar como protagonistas?
Com a mostra “Coordenadas: política e audiovisual entre centros e periferias” pretendemos reunir, nas cinco grandes regiões da cidade de São Paulo, menos um “público alvo” e mais interlocutores interessados em pensar coletivamente a questão geral que trazemos, para desdobrá-la livremente em muitas direções, inicialmente imprevisíveis para o pequeno coletivo que somos. Nos interessa, portanto, fazer desta mostra um verdadeiro espaço de formação cultural e política. Pois entendemos que cultura e política nunca estão dissociadas, que formação é algo que se constrói coletivamente e com liberdade, longe de toda forma de doutrinação.
Justamente por isso não projetamos uma mostra competitiva e, em nossa convocatória, procuramos convidar pessoas e coletivos a inscrever obras que pudessem ajudar a pensar a relação entre centros e periferias. Recebemos 53 filmes e vídeos, entre curtas, médias e longas metragens, documentários e ficções. Todos produzidos pela periferia do circuito, sempre bem fechado e centralizado, da Grande Indústria audiovisual. Selecionamos 28, aos quais adicionamos outros 3 a convite. Para isso, não trabalhamos com critérios de excelência técnica ou de posicionamento político. Buscamos, sim, compor uma programação que ajudasse a responder as perguntas que estamos fazendo.
Assim, esses 31 filmes nos levaram à elaboração de 12 programas que são como 12 cartografias. Em cada uma delas, as composições entre produções audiovisuais altamente diversificadas destacam um foco e um tipo de trincheira das relações, sempre tensas, entre centros e periferias. São 12 trincheiras, erguidas pelos que lutam nos extremos das periferias ou bem no meio dos centros urbanos; fazendo arte pelas ruas ou vídeo popular por becos e vielas; interpretando e refletindo sobre ambições econômicas ou sobre os fluxos das cidades; pelos que lutam a favor da revolução na América Latina; pelos que lutam contra a criminalização da classe trabalhadora ou contra o “progresso” defendido pela classe burguesa; pelos que lutam contra o esquecimento forçado ou, simplesmente, por dignidade.
Por fim, fizemos uma aliança com o coletivo Nossa Tela para levar uma parte do Festival de Vídeo nas Escolas 2011, que reúne dezenas de produções de alunos das escolas públicas municipais, para dois Centros de Educação Unificada (CEUs). Neles, queremos conversar com aqueles que formam a primeira geração a crescer nas periferias da capital brasileira do capitalismo com acesso a instrumentos de produção audiovisual, por mais precários que sejam.
Há tempos, coletivos como o nosso lutam pelo uso revolucionário desses instrumentos. Hoje, quando eles enfim começam a acompanhar não apenas as mãos e os olhos, mas também as vontades e decisões dos trabalhadores, mais do que nunca, é preciso esticar telas, ligar projetores e ocupar cidades inteiras com mostras como esta.
Coletivo FELCO-SP | Outubro de 2011
EM SÃO PAULO
5 – Transação de valores
Antes de tudo, entre centros e periferias, há sempre dinheiro – e o seu jeito próprio de valorizar coisas e pessoas, de permitir a transação de seus valores. Dinheiro como aquele que os centros fazem com o trabalho dos que moram nas periferias, mesmo quando estas estão encravadas no meio de regiões centrais. Ainda mais se a periferia de onde esse trabalhadores vêm encontra-se em outro país onde, apesar de tantas riquezas, falta justamente dinheiro. Nesse caso, pode-se fazer ainda mais dinheiro às custas de suas vidas. É bem essa a situação de onde parte Circuito interno, uma ficção breve, mas tão intensa quanto o ritmo de trabalho de seus próprios personagens e tão devagar quanto a passagem do tempo que lhes resta para pagar a dívida contraída no processo migratório. O tempo aí se conta em dinheiro.
O mesmo dinheiro que, como se sabe, estabelece as coordenadas da desconfiança generalizada entre as pessoas, seja aquela estimulada pela competição na classe dos administradores, seja aquela com que estes se dirigem aos empregados que chamam de “menos qualificados”. Mas, sem dúvida, a mais cruel das desconfianças provocadas pelo dinheiro é aquela que a todo momento atinge as relações entre os moradores das periferias urbanas.
Algo que as longas tomadas de Entre nós, dinheiro, uma tragicomédia de rua, deixa aparecer no desenrolar das menores e mais inocentes conversas cotidianas, na frente de um desses mil pequenos bares que se multiplicaram pelas periferias de São Paulo nas últimas décadas. Em tempos de “aceleração do crescimento” no país, é preciso rir para não chorar quando o dono do estabelecimento tenta se fazer de “empreendedor” e agradece a colaboração financeira e a dedicação de seus funcionários para anunciar uma nova fase de seu negócio. Mas quando a alegria tem o dinheiro como motivação, ela não pode ser duradoura. Pois o dinheiro não pode ser distribuído igualmente para todos.
Assim, não poderia haver melhor introdução para Asfalto Morro, uma montagem de vídeos sobre os sentidos e as consequências mais imediatas da “valorização” e da “preparação” do Brasil como país-sede de dois dos maiores eventos (e negócios) do planeta: a Copa de 2014 e a Olimpíadas de 2016. No Rio de Janeiro, sintomaticamente, o carro-chefe escolhido por políticos, empresários e grandes mídias para esse processo é um projeto que leva o nome de Unidade de Polícia Pacificadora (UPPs). Com elas, como mostra o vídeo, continua a escorrer sangue dos morros para o asfalto. Mas agora, mais do que nunca, escorre também dinheiro. Não aquele que 99% das favelas ainda têm que pagar – ora às polícias, ora às milícias, ora aos fiscais – para não terem seus comércios fechados e suas festas proibidas. O dinheiro agora, nas pouquíssimas comunidades “pacificadas” e “libertadas” pela intervenção armada, escorre de pouco em pouco na direção dos cofres centrais, públicos e privados, por meio do pagamento de taxas e do consumo de serviços. Escorre igualmente, de muito em muito com a altíssima especulação imobiliária que cresce os olhos sobre suas terras e entornos.
Mas entre centros e periferias há, sempre, outros valores que não se deixam medir pelo dinheiro. O tempo nas oficinas de costura de São Paulo, onde trabalham imigrantes bolivianos, pode até ser contado em dinheiro. Só que essa relação nunca será como nas bolsas de valores, onde o dinheiro é uma droga e onde os servos da especulação lutam contra o tempo, consumindo o futuro dos outros em troca de um ganho sempre mais alto para si mesmos. Nas oficinas, o tempo que (não) passa é mais do que dinheiro, porque o dinheiro aí tem o futuro por medida – saudades da família ou obrigações rituais incomensuráveis. Outros valores, como aqueles que um menino, morador de uma favela carioca chamada Nelson Mandela, tenta explicar (em vão) ao Presidente de sua República e ao Governador do seu Estado dizendo que ali onde mora “é a Faixa de Gaza”.
Circuito interno
Júlio Martí (13 min).
Elias, um imigrante boliviano ilegal, pressionado por seus colegas de trabalho busca uma forma de batizar seu sobrinho. Através da sua jornada de trabalho acompanhamos o cotidiano do abusivo universo nas oficinas de costura espalhadas no centro de São Paulo. Esta é uma obra ficcional, baseada em uma exploração factual.
Entre nós, dinheiro
Grupo de trabalho Tela Suja (25 min).
É churrasco de fim de ano na firma, o Bar do Velho Cuba, e o que era para ser uma festa é trabalho para os funcionários. As relações mediadas pelo dinheiro e pela exploração, se juntam ao discurso democrático do patrão e à sua própria ilusão no crescimento econômico do país. Trabalhando, é possível enriquecer? Um dia de “festa” na periferia do Capital.
Asfalto morro
Roberto Gerbi (25 min).
Contraponto entre o discurso das grandes corporações de imprensa no Brasil em defesa da “pacificação” e a repressão policial crescente e vivida pela população das favelas nas grandes metrópoles. Discussão levantada tem como pano de fundo preparação de São Paulo e Rio para a Copa do Mundo, instalação de bases da PM e presença do Exército nas favelas.
EM PORTO ALEGRE
PROGRAMA 2 – Duração: 145 minutos
Circuito Interno, de Júlio Martí (SP, ficção, 13 minutos)
Elias, um imigrante boliviano ilegal, pressionado por seus colegas de trabalho, busca uma forma de batizar seu sobrinho. Através da sua jornada de trabalho acompanhamos o cotidiano do abusivo universo nas oficinas de costura espalhadas no centro de São Paulo. Esta é uma obra ficcional, baseada em uma exploração factual.
Entre Nós, Dinheiro, de Renan Rovida (SP, ficção, 25 minutos)
É churrasco de fim de ano na firma, o Bar do Velho Cuba, e o que era para ser uma festa é trabalho para os funcionários. As relações mediadas pelo dinheiro e pela exploração se juntam ao discurso democrático do patrão e à sua própria ilusão no crescimento econômico do país. Trabalhando, é possível enriquecer? Um dia de “festa” na periferia do Capital.
Jennifer, de Renato Candido de Lima (SP, ficção, 29 minutos)
Jennifer, uma garota de 17 anos moradora da Vila Nova Cachoeirinha, manipula suas fotos no Photoshop para ficar mais bonita e mais clara com cabelos lisos. Num momento de sua vida em que se torna adulta, procura emprego, procura se relacionar com alguém que ela ame, Jennifer vive dilemas relativos à sua identidade numa sociedade que está calcada nos significados de branquitude.
Narrativas da Sé, de Diogo Noventa (SP, experimental, 20 minutos)
Videocriação em oito cenas realizadas a partir da observação de situações vivenciadas na Praça da Sé em São Paulo.
Videolência, de Daniel Fagundes, Diego ff. Soares, Paulo Pucci e Fernando Solidade Soares (SP, documentário, 58 minutos)Uma reflexão sobre a recente manifestação audiovisual que a periferia propõe, discutindo os velhos padrões televisivos, política e sociedade dentro do movimento de vídeo popular, abordando suas próprias deficiências e apontando os valores desta nova produção.