quarta-feira, 15 de março de 2017

CRÍTICA SEM CABEÇA



Caros leitores, espectadores ou futuros espectadores do filme SEM RAIZ. Esta é uma resposta à crítica feita por Fabian Cantieri, publicada dia 02 de Março de 2017, na revista eletrônica Cinética ao filme que dirigi, SEM RAIZ, e faço esta resposta por aqui porque os editores Fábio Andrade e Raul Arthuso nos negaram o direito de resposta no mesmo veículo em que foi publicada a crítica, o site da revista – nos ofereceram somente a página no facebook para isso. Recusamos.


INTRODUÇÃO

O filme SEM RAIZ narra momentos decisivos e extraordinários de quatro trabalhadoras urbanas na grande São Paulo: a desempregada que vai vender flores na rua, a trabalhadora do telemarketing que quer abrir uma creche, a corretora de imóveis que quer mudar com o filho para o campo e a professora universitária (substituta) argentina em conflito com a distância de seu objeto de estudo e da práxis de transformação social. Todas histórias com uma ligação profunda com o tema do trabalho e da fome. E em cada uma destas histórias nomeadas com cartelas em seus inícios (Sem Emprego, Sem Lucro, Sem Propriedade e Sin Comunidad), as lutas são individuais pela sobrevivência material conciliada à busca de um sentido maior em suas vidas dentro das possibilidades que têm e podem decidir. Assim, seus sonhos e desejos são achatados, e suas vidas danificadas por uma presença onipresente do capital.

Qual a escolha possível de uma mulher da classe-que-vive-do-trabalho no Brasil hoje?

O filme se alimenta e dá continuidade ao conceito e práxis do distanciamento desenvolvida por Bertolt Brecht, dramaturgo alemão, para que o espectador possa se divertir pensando e refletindo sobre os mecanismos de domínio do capital e de sua naturalização.

Não se trata de um filme sem emoção, mas pelo contrário, as emoções que podem surgir desta relação crítica à narrativa e ao assunto, são emoções novas.

Em cada fragmento das histórias pessoais em seus retratos ficcionais, há espaço aberto para a vida real e o mundo adentrarem a ficção e sujarem a tela entre a câmera e as personagens. O ponto de vista que narra e acompanha essas trabalhadoras, em algum momento as observa com distância imagética e sonora para também dar espaço e tempo suficientes à compreensão.

Ademais, todas as histórias são entrecruzadas por uma personagem assentada rural, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Este Movimento de luta pela terra, reforma agrária e mudanças sociais existente no Brasil é uma grande força popular desde 1984.

E em contraponto, esta personagem Sem Terra colabora para o distanciamento crítico em relação a estas histórias, entrecruzando cenas de seu cotidiano: ora comentando a trajetória da personagem que ela entrecruza, ora negando estas personagens, ampliando a leitura do próprio assunto abordado em alusão a Eisenstein e à montagem intelectual, procedimento este também utilizado dentro das próprias histórias.

O cotidiano da personagem Sem Terra é contraponto aos momentos extraordinários dos personagens em que o seu entrecruza, mas o processo de conquista de terra no Brasil é forjado de muita luta coletiva e enfrentamento aos grandes poderosos proprietários rurais brasileiros. Mas esta luta é pregressa ao momento retratado da personagem no filme. Está presente como memória e em sua práxis, pois à medida em que trabalhadoras e trabalhadores transformam a realidade do domínio dos grandes latifúndios de terra, também se transformam em pessoas que vivem relações mais comunais e coletivistas.

Assim, há mais semelhança direta à práxis de Eisenstein e Brecht, mas também a Tomás Gutiérrez Alea, pois estes lidaram, cada um a seu modo, com elementos da realidade em transformação para realizarem uma arte dialética, popular e compromissada com a realidade de seu tempo histórico e seus novos sujeitos, incluindo eles próprios.

Para uma vida extraordinária (de luta coletiva e vitória contra os grandes), uma narrativa de momentos cotidianos. Em contraponto às outras personagens que para suas vidas danificadas e acachapantes, narrativas de momentos extraordinários e de mudanças possíveis.

Vale ressaltar que SEM RAIZ também se posiciona contra o alto fluxo de imagens da publicidade, da internet e por boa parte do cinema mundial. Só há cortes dentro da mesma cena, quando há necessidade para acrescentar camadas de sentido à narrativa e ao discurso fílmico, conclamando o público a observar com atenção ao quadro em alusão ao primeiro cinema dos Lumiére, mas com o ponto de vista oposto, porque pertencentes à classe trabalhadora e não ao patronato. Há também a evocação do público a imaginar, com o uso em muitas cenas das personagens movimentando-se para o fora de campo, ampliando com isso a encenação (o mise-en-cène) e extrapolando os limites da tela através do som.

Assim, a imaginação também é requerida e alimentada nas próprias histórias, porque inconclusas no filme, mas possivelmente completadas pela imaginação do espectador ativo. E dialogamos com outro aspecto do conceito brechtiano, a relação ativa do espectador.


APONTAMENTOS

“Quando se está diante do novo, recorre-se ao velho.”
(Karl Marx)


Há um ataque frontal ao Tela Suja Filmes, em uma clara ofensiva de cortar pela raiz o cinema que realizamos pela crítica de Fabian. O crítico em questão exige de nós uma espécie de cartilha de qualidade e se esforça em todo seu texto em desqualificar nosso cinema, como se nós tivéssemos tentado fazer o cinema que ele defende, mas supondo que não somos capazes. Mas se engana redondamente porque não é o que buscamos como cinema. É como se este e outros tantos críticos possuíssem esse padrão de qualidade, talvez comprado em Euros ou Dólares, e o impusessem como uma espécie de ISO 9001 para Cinema, porque veem o cinema e os filmes como mercadorias de exportação para Europa e EUA e SEM RAIZ não se encaixa.

São muitas as confusões políticas, também entre cinema/religião, cinema e política ou mesmo seus critérios do que seja poesia, além da definição sobre o filme como mal ajambrado e canhestro.

Antes de qualquer coisa, é sintomático que o crítico erre o nome do movimento social representado no filme (o que acontece mais de uma vez, não sendo erro de digitação), deixando a entender sua distância e falta de conhecimento destes dois movimentos sociais brasileiros. O movimento retratado no filme é o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e não o MTST como escreve o crítico em algumas passagens.

Abaixo cito alguns trechos da crítica de Fabian:

"O filme é como uma roda de pregação para crentes – desnecessária a carpintaria, pois o que é preciso mesmo é retomar a palavra de ordem, quantas vezes for necessário”. 

“Um desígnio que vislumbra mas nunca alcança o subterrâneo de nada. Quer nos transmitir um ardor de luta, mas como receber qualquer informação pelo cinema sem a poesia? A razão bastaria ao cinema (ao mundo)? Não seria a palavra, como pura informação, uma mera instrumentalização oca se não recombinada aos signos poéticos do cinema?”

“A esquiva à gramática plano/contra-plano parece só um recurso deliberadamente negado(...) Aqui, a coisa parece mais ideológica, como se o contra-plano fosse algo intrinsecamente americano, imperialista, colonizador, e até o mais básico gesto cinematográfico fosse, às últimas consequências, uma derivação política.”

“Em Sem Raiz , a ficcionalização se apropria do discurso bruto do mundo e o põe em cena – como se fosse possível – sem qualquer lapidação”.

“Uma cena não ganha força pela simples precisão política, nem torna-se crível porque pode estar no mundo, e, sim, porque cabe ao próprio mundo de seu cinema.”

Quais seriam esses signos poéticos e que subterrâneo é este? O subterrâneo da ambiguidade? Realmente a poesia nossa vem do retrato ficcional das personagens atravessadas pela ideologia capitalista, e em contraponto pela práxis política de uma militante do MST, assentada rural. A poesia está entre elas mas também entre cada uma das histórias. É muito mais refinado do que o crítico pode pressupor que conseguimos fazer. Mas fizemos. O filme está aí para quem quiser assistir.

O que lamentamos é que o crítico não fez nenhum esforço para entender o “mundo do cinema” de SEM RAIZ e os cinemas e poéticas com as quais ele dialoga. Suas exigências de crítico podem muito bem ser exercitadas com êxito em qualquer propaganda de agronegócio: com certeza estas atendem as exigências técnicas “bem ajambradas” para o crítico que se revela um excelente nominador infértil.

E sem dúvida nenhuma: até o mais básico gesto cinematográfico é uma tomada de posição política e um ponto de vista, e no nosso caso, crítico. E tudo o que a direção é responsável, juntamente com as outras funções estão de acordo com a proposta estética do filme: opção estética radical de quem vê o mundo desses lados de cá da luta de classes, na qual a ficcionalização que faz com que o espectador remeta a todo momento ao próprio mundo real é essencial para uma atitude crítica. É necessário, no caso de SEM RAIZ que o espectador (crítico profissional ou não) se posicione: e Fabian se posicionou do lado de uma casta dominante.

SEM RAIZ é uma poesia dura, árida, seca e sutil. Mas uma poesia coletiva e posicionada que se inventa como cinema, quer o crítico queira, quer não. Poderia citar o próprio Brecht, Maiakóvski, Thiago de Mello, mas cito o próprio filme, o epílogo de SEM RAIZ: cinco mulheres assentadas rurais lavando e guardando a louça, tomam café e conversam, rememorando o período de luta pela terra, na terra conquistada em que vivem, enquanto chove do lado de fora, visto e ouvido a meia distância, dentro da cozinha. Esta cena termina com a frase de Arlinda da Silva: “... feijão precisa de três águas: uma pra plantar, uma pra florar e outra pra cozinhar”. Poesia da lida, do trabalho, da experiência da vida e da luta. E cito também o que a atriz Carlota Joaquina disse no debate, se referindo à história do bairro da Barra Funda em São Paulo, que historicamente era um bairro de escravos que carregavam até o rio a merda de seus senhores: “Nós aqui (equipe e elenco do filme), somos diferentes entre nós, mas cada um de seu jeito somos todos carregadores de merda!”

E antes de encerrar, é preciso esclarecer ainda mais alguns pontos em que Fabian distorce o filme, os fatos e os acontecimentos históricos em nome de seu projeto de cinema ISO 9001, em uma tentativa traiçoeira de afastar qualquer espectador de SEM RAIZ:

A resposta que a atriz Deborah Hathner deu durante o debate respondia a uma série de questões levantadas pelo cineasta Ernesto de Carvalho para as atrizes, mas principalmente se elas pensaram enquanto faziam o filme, em para quem estavam fazendo e como ele era feito (sem facilitar e mastigar para o público a narrativa, negando o cinema narrativo tradicional que mostra um nascer do Sol para mostrar que amanheceu, por exemplo). Deborah também respondia à questão levantada pelo crítico Rodrigo Pinto de que alguns críticos e cineastas estavam dizendo que o filme idealizava a vida no campo e também, em sua resposta, complementava a resposta da atriz Ruth Melchior às mesmas questões. Com isso, Deborah disse que o filme também a representava politicamente e que existe uma militância dela em diálogo com os sujeitos da luta coletiva retratados no filme, integrantes do MST. E que o posicionamento político do filme é comum à sua prática e suas relações sociais.

Sobre a estrutura narrativa do filme (dividida em capítulos) e o simulacro da estrutura da crítica de Fabian há apenas uma diferença: o crítico não entendeu que SEM RAIZ não se fragmenta em quesitos como os de avaliação de Escolas de Samba, como ele o faz em sua bem ajambrada e preguiçosa crítica. Talvez ele não queira entender o que significa dialética.

Penso não ser por maldade que Fabian separa um plano de cada segmento, e necessariamente, sempre planos com cabeça cortada, mas não faça nenhuma referência à encenação que trabalha o fora de campo, ampliando as dimensões da própria tela e angulando possibilidades de leituras para as cabeças estarem, em parte fora da moldura da tela. O crítico nem tenta entender o porquê destes planos serem dessa forma. Pois dou um exemplo:

No capítulo SEM LUCRO, sobre a cena citada em que a moça chega em casa e o quadro “corta sua cabeça”, essa mulher de cabeça cortada é Débora (Deborah Hathner) que saiu da palestra do Sebrae onde descobriu que para abrir um negócio próprio, não se deve perguntar o que se gosta de fazer, mas sim, primeiramente o que o mercado precisa. Na sequência, Débora come milho em pé em frente ao seu local de trabalho (uma empresa de telemarketing) e entra para trabalhar já com o som do trabalho em off durante sua entrada. Ela chega em casa e sua tia Dinorah (Marilza Batista) está cuidando de uma criança que revela-se na cena, filha de Débora, Nina (Nina Dias). Nina se recusa carinhosamente a cumprimentar a mãe quando esta chega. Débora, cansada, senta-se na cadeira e sua cabeça está acima do limite do quadro, o foco vai para sua tia que senta-se com ela à mesa. Elas conversam. Há um corte. A câmera fecha em sua tia para esta lhe contar uma história que lhe contaram na rua: “Amarrada no Dinheiro”. Esta narrativa dentro da narrativa tem muita força dramatúrgica e de encenação (que a atriz realiza brilhantemente), pois exige que ela trabalhe ora em primeira pessoa (a Tia), ora em terceira pessoa (a narradora), ora assumindo o personagem (que lhe contou a história) e ora como própria atriz, deixando-nos ver o que ela pensa da história contada. Prosseguindo: quando chegamos ao fim deste bloco (SEM LUCRO), a personagem Débora aceita um empréstimo de um agiota (Francis Vogner dos Reis) se comprometendo a se endividar na Casas Bahia. No fim desta cena de empréstimo que se dá na mesma cozinha em que a tia havia contado a história da Amarrada no Dinheiro, há um plano fechado em Débora onde o som ambiente vai saindo lentamente até o silêncio, criando uma suspensão e vemos o rosto de Débora olhando para baixo e sentada à mesa. Se montarmos intelectualmente os dois momentos (Amarrada no Dinheiro e este), veremos que este plano fechado é o perfeito contra-plano do plano onde a tia lhe contava a história Amarrada no Dinheiro, mas com uma trajetória histórica entre esses dois planos. Quem está amarrada no dinheiro e porquê?

Sobre a citação do crítico Thiago Britto sobre outro filme, em relação à falta de urgência de SEM RAIZ, o crítico Fabian não está entendendo nada? Realmente acha que não é urgente tratar do assunto empreendedorismo feminino hoje sem se entregar às emoções fáceis, e ao contrário, com distanciamento crítico a isto? Ele pode não concordar com nosso cinema, mas em relação a isso realmente acredita no que escreveu: que SEM RAIZ não é um gesto de entrega a um cinema radicalmente comprometido com as questões de nosso tempo? Ou se esquece que os direitos trabalhistas estão acabando, que o latifúndio nunca esteve tão presente diariamente na vida das pessoas com o nome de agronegócio e que a maior resistência contra este modelo de produção de alimentos e concentração de terras é defendida e praticada pelo MST? Que cada vez mais se trabalha para trabalhar e principalmente as mulheres da classe-que-vive-do-trabalho são as mais prejudicadas e não tem mais tempo: se alimentam precariamente, e vendem a força de trabalho na hora do almoço ou durante as poucas horas que teriam de sono, pensando na próxima refeição ou nas contas a pagar. E isso não é urgente e importante?

E porque não mergulho junto ao protagonista? Talvez se o crítico lesse um pouco mais do que apenas a poesia do Brecht que cita como título – em alusão à minha citação no debate como norteadora da montagem do filme – veria que o cinema que tem diante de si para criticar em SEM RAIZ, necessita de uma reinvenção desta sua crítica viciada em ISO 9001. E por último, faz-se necessário dizer que lendo a crítica: mais uma vez se falseia elementos tão importantes de SEM RAIZ, como a encenação (ou mise-en-cène, como preferir) e as atuações.

Atuações tão verdadeiras e vivas como o são as atuações das protagonistas deste filme, desmascaram a grande falsidade e o maneirismo de boa parte do cinema brasileiro e mundial. Lendo a crítica, parece que o que fazemos é a coisa mais fácil, primária e pueril do mundo. Mas se trata de um realismo minucioso e vivo, no qual os espectadores podem acompanhar as sutis mudanças nas personagens e em suas relações, com o apuro que o crítico tanto repudia. O que a crítica nem arranha são os comentários dos espectadores comuns depois da sessão de Tiradentes: “a vida é assim mesmo e somos iguais a estas personagens, mas não tem que ser assim.”

Renan Rovida
15 de Março de 2017

 
Crítica de Fabian pela revista Cinética:
http://revistacinetica.com.br/nova/e-a-tempestade-que-faz-dobrar-os-dorsos-dos-operarios-nas-ruas/